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Nos bairros da cidade de Buenos Aires como La Boca, ou localidades próximas, como Enseñada e Dock Sud, os cabo-verdianos estabeleceram as suas famílias e criaram os filhos, trabalhando nas marinhas de guerra e mercante do país. ‘Bunesar’ foi sempre o sul mais a sul da diáspora, antes uma passagem pelo Mar di Kepona, atrás de baleias, quando a terra do tango prometia e cumpria com uma vida melhor. Os homens e mulheres das ilhas foram os primeiros a chegar aqui como pessoas livres, ainda no século XIX, numa terra que muito cedo perdeu a memória dos seus ancestrais africanos. A luta, hoje, é pela visibilização e valorização da cultura afro, numa sociedade que ainda se vê como ‘europeia’.
Entre o “Negro Manuel”, guardião da Virgem de Lujan, nascido no início do século XVII, e María Fernanda Silva, cientista política e diplomata argentina, embaixadora argentina no Vaticano, até Fevereiro de 2024, vão mais de quatro séculos. E também muitas viagens transatlânticas das ilhas de Cabo Verde rumo ao sul mais a sul.
Mas, na verdade, ao que parece Manuel Costa de Los Rios, que aguarda a sua vez para ser canonizado pelo Papa, nasceu na costa da Guiné e não nas ilhas de Cabo Verde, como reivindicam os cabo-verdiano- -argentinos. E terá chegado ao país sul-americano, na época a colónia espanhola de Rio da Prata, integrado num lote de escravos africanos vindos de Pernambuco, no nordeste do Brasil, para ser vendido em Buenos Aires.
E se o site Vatican News dá conta de que se trata de uma “história que começa em Cabo Verde onde Manuel de Los Rios foi baptizado e vendido como escravo, segundo o historiador cabo- -verdiano o Padre António Ferreira, o certo é que falta confirmar o local de nascimento do Negro Manuel. Este órgão, apesar de nunca referir o local de nascimento, adianta ainda que o “escravo Manuel pertenceu à Diocese de Santiago, confirma o historiador, inédita história partilhada entre a Argentina e Cabo Verde”.
Mas o certo é que o site Wikipedia, por exemplo, no que respeita a Manuel, na vasta informação disponibilizada sobre esta figura, não junta uma linha sequer sobre o nascimento em Cabo Verde nem se refere estas ilhas. O que indica que, muito provavelmente, Manuel terá sido trazido da costa da Guiné para a Ribeira Grande, em Santiago, como era comum, e aqui ‘ladinizado’, instruído.
Mas aquilo que está comprovado é que os marinheiros cabo-verdianos dos baleeiros americanos foram, esses sim, os primeiros homens negros a chegar a Rio da Prata, como homens livres, no final do século XIX. Num percurso que já tinha começado na costa Leste dos Estados Unidos e nas ilhas do Havai, com homens do Fogo, Brava e São Nicolau, décadas antes.
Já Maria Fernanda Silva (n. 1965), filha de pai argentino e mãe cabo-verdiana, foi a primeira mulher, em 200 anos, a ocupar o posto de embaixadora da Argentina na Santa Sé, no Vaticano. Provavelmente o cargo mais alto ocupado por uma mulher de origem cabo-verdiana e afro-descendente argentina.
Ao chegarem, os homens cabo-verdianos arranjaram trabalho e estabeleceram-se em Buenos Aires, em bairros (agora verdadeiras cidades) como Dock Sud, La Boca e Enseñada, mantendo-se ligados ao mar, em especial na marinha mercante argentina, a partir dos anos de 1930.
A invisibilização da afro-argentinidade
Mas muito antes, quando ainda não havia o Canal do Panamá, muitos foram os marinheiros crioulos a contornar o Cape Horn, na ponta sul do continente, na passagem para o Oceano Pacífico. Mar famoso pelas tempestades violentas, os crioulos baptizaram-no de Mar di Kepona.
Estabelecidos em terra, a comunidade começou a crescer neste país com índices de desenvolvimento económico de fazer inveja aos europeus. Com o tempo, chegaram mulheres cabo-verdianas sós também em busca de trabalho, alojados em casa de parentes. Mesmo aqueles e aquelas que não os tinham, a comunidade organizou-se de forma a que não faltassem ‘primos’ e ‘primas’ que os fossem receber ao cais, contornando assim a proibição de passageiros sós desembarcarem no país.
Mas, tudo isto acontecia fora do olhar dos argentinos, ao longo de décadas, longe da percepção de um povo que sempre se viu como descendente dos povos brancos europeus, “que vinham nos barcos”. Inclusive o anterior presidente argentino, Alberto Fernandez (2019-2023), ajudou ao reforço do mito e à ‘invisibilização’ dos negros, citando, erroneamente, o poeta Octávio Paz sobre esta origem exclusiva europeia, dizendo que “os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros saíram da selva e os argentinos chegaram nos barcos que vinham da Europa. E assim construímos a nossa sociedade”. E a luta contra essa ‘invisibilização’ tornou- -se a causa de muitos cabo-verdianos das gerações mais novas, nos últimos tempos.
E é graças ao empenho de dirigentes comunitários como Miriam Gomes, advogada de 62 anos e filha de cabo-verdianos, nascida e criada em Dock Sud, que jornais de referência argentinos, como El Clarim e La Nacion, passaram a interessar- -se pela ‘afro-argentinidad”.
Presidente da Sociedad Unión Caboverdeana de Dock Sud, esta professora especializada em Literatura Africana, tem sido a voz dos 25 mil cabo-verdianos e seus descendentes na Argentina, assumindo-se, também como porta-voz dos argentinos afro-descendentes. E foi aqui, no bairro de Dock Sud (doca do sul, nomeada pelos ingleses), que a comunidade se estabeleceu e viu crescer os seus filhos, entre a margem do rio Riachuelo e a autoestrada de La Plata.
A descoberta das origens
Cresceu lado a lado com outras populações vindas a antiga Jugoslávia, da Rússia, Itália, Espanha, Polónia e países árabes. E agora, o que incomoda Miriam Gomes é a comunidade passar a ter mais visibilidade graças à chegada de imigrantes senegaleses e nigerianos. Ela que desde muito cedo teve consciência das suas origens e valores, transmitidos logo na adolescência, pelo pai, um dos fundadores da secção local do PAIGC, ainda antes da independência de Cabo Verde.
Mas outros se instalaram, também, no bairro de La Boca, nos finais do século XIX, alguns vindos de São Vicente e Santo Antão, para trabalhar no porto como manobradores de máquinas. Entre os seus descendentes contam-se dois cantores de tango: Juan José e Eugénia Ferreira, nascidos nos anos de 1920. Uma história toda ela registada em fotografias, que resgatam memórias desses primeiros anos do século XX, que se amontoam em álbuns de fotos que vão passando de geração em geração.
A cachupa que é servida na Associação, neste bairro portuário da cidade, aos fins de semana, também serve para combater o modelo de país que triunfou ideologica e militarmente, que se vê culturalmente branco e europeu. Alguns dos sócios e frequentadores mais velhos, que aqui vêm conviver e escutar a Cesária Évora, já nasceram na Argentina nos anos de 1940 e alguns até antes.
Combate-se a recusa da herança africana no país, com passeatas, colóquios, música e gastronomia, atraindo a imprensa de Buenos Aires. Por aqui, nas décadas de cinquenta e sessenta, é a própria Miriam Gomes que conta, nas suas entrevistas que dá à imprensa curiosa, a comunidade cabo-verdiana era bastante significativa, com quarteirões onde podia haver até trinta famílias cabo-verdianas, num espaço de cem metros.
A mãe de Miriam é filha de emigrantes de São Vicente e o pai veio de Santo Antão para a argentina depois da Segunda Guerra Mundial e aqui se conheceram. A maior parte dos homens encontraram trabalho na marinha mercante, na marinha de guerra argentina, nas frotas fluviais, até que estas companhias de navegação foram privatizadas, nos anos de 1970. À semelhança de outras famílias de marinheiros, os filhos viam muito pouco os pais. Só na adolescência e após a reforma dos seus progenitores, estes se viam todos os dias.
Em entrevista ao site da DW, Miriam conta como a identidade era um factor marcante, pois sair de casa para ir à escola, que ficava a três quarteirões, implicava passar pelas casas das famílias cabo-verdianas do bairro. “Não podia simplesmente passar e não entrar para cumprimentar.” E na escola, sentava-se ao lado de meninas croatas, eslovenas, sérvias, espanholas, italianas, num caldo de culturas.
Joaquim Arena
Leia na íntegra na Edição 901 do Jornal A Nação, de 05 de Dezembro de 2024