Desde que o Conselho Superior da Magistratura (CSM) lançou a designada “Carta para celeridade e melhor Justiça” foram diversas as vozes que destacaram as insuficiências de um trabalho que apesar de meritório – mais não seja pela discussão pública que tem provocado sobre diversos problemas do funcionamento do processo penal – tem muito de arenoso para a vista, em particular dos mais desatentos ou dos que estejam mais alheados da realidade do processo penal.
Seguindo uma estratégia comunicacional que já tem mofo, alcançando o foco mediático nas medidas mais (a)berrantes – desde o pagamento de multas superiores a dez mil euros quando o juiz considerar que alguém praticou atos “manifestamente infundados, visem ou tenham por efeito entorpecer ou retardar o andamento do processo, ou a disposição substancial de tempo e meios”, ao quase aniquilamento da fase de instrução –, o CSM permite acentuar um discurso, leviano, ignorante ou desinformado, passando um desmerecido atestado de salubridade à fase de inquérito do processo penal. Basta ver que exclusivamente quanto a esta fase, o trabalho do CSM apresenta apenas duas medidas: a “obrigatoriedade de uniformizar a boa técnica de elaboração da acusação e por artigos” e a “obrigatoriedade de nela indicar os meios de prova por remissão ao facto ao conjunto de factos”. Chega a ser confrangedor que se sustente que o contributo do trabalho para acelerar a fase de inquérito passe apenas por recomendar bom senso ao Ministério Público.
Mas afinal de contas, qual é o receio de enfrentar os constantes atrasos na fase de investigação? Por que razão há juízes e procuradores que persistem em cerrar fileiras contra as garantias legais dos investigados, dos acusados, dos arguidos? Os tempos que se vivem não recomendariam um reforço acrescido de tais garantias?
Ainda que considere que a raiz do problema está além disso – e aí já irei –, não poderei deixar de me associar aos que já destacaram a circunstância de este trabalho ser o produto de um grupo composto por 6 juízes e 1 procurador, no qual foram também entrevistados 12 juízes e 3 procuradores, o que só pode significar que foi deliberado o seu mote parcial, que arredou qualquer intervenção da advocacia, mas já agora, e também, dos funcionários judiciais. Não vem nenhum mal ao mundo nisso, no querer exercer lobby sobre o poder legislativo e sobre a opinião pública, transmitindo a visão redutora de apenas um lado da bancada do tribunal. Não se queira é confundir a realidade com a perspetiva corporativa, ou corporativista, dessa mesma realidade. E já agora, também não se tente esconder que este trabalho tem por base processos concretos, mediáticos e que mais do que enfrentar problemas estruturais, visa evitar que se repitam eventuais más práticas verificadas num ou noutro caso.
Não é, obviamente, inocente que o levantamento estatístico feito para o trabalho se tenha concentrado na fase de instrução, que se tenham consultado “cinco processos que integram o conjunto de processos de excecional complexidade” ou que se tenha feito um “levantamento estatístico dos incidentes de recusa de juiz nos últimos cinco anos”.
Agora o que realmente me traz: as razões principais de não se enfrentarem os graves atrasos na tramitação da fase de inquérito são, a meu ver, duas. A do costume e a encapotada.
A do costume é a que emerge na insuficiência de meios. E este trabalho, que se revela assim derrotista e impotente, privilegiando uma narrativa mais próxima do discurso populista reinante, abdica de procurar persuadir o poder político de oferecer os meios que até há algum tempo – ainda não tão populista – se reivindicavam.
A razão encapotada é a que resulta dos dados estatísticos sobre a duração média dos processos findos nos serviços do Ministério Público, que muito têm permitido a alguns procuradores contra-atacar contra aqueles que denunciam os atrasos dos inquéritos, os abusos e o pífio poder hierárquico e disciplinar.
Segundo os dados divulgados pela Direção-Geral da Política de Justiça (DGPJ), entre 2007 e 2024, considerando apenas os inquéritos do processo criminal, a duração média dos processos findos nos serviços do Ministério Público é de cerca de 6 meses. Mas qual o problema deste número? Eu digo: o problema é que o mesmo engloba a totalidade dos inquéritos tramitados ao longo destes últimos 17 anos; ora, ¾ / 75% desses inquéritos são arquivados, pelas mais variadas razões, sendo certo que na maior parte das situações isso não só pode acontecer, como acontece de facto, muito rapidamente. Se ¾ / 75% da amostra (de centenas de milhar de processos) que conta para a média considerada é esta, é evidente que as situações carentes de atenção – aquelas onde a ação penal é efetivamente exercida e culmina com a decisão de acusar – embrenham-se num número que não tem qualquer correspondência com a realidade. Qualquer pessoa que se veja no calvário que é o tempo real de um inquérito criminal sabe que esta estatística mente e não pode acreditar nesses números.
Ao longo dos últimos 12 anos da minha vida profissional já intervim em dezenas de inquéritos criminais que culminaram com uma acusação. De 57 desses inquéritos, apenas 1 foi encerrado em 6 meses. O mais longo deles foi encerrado ao fim de 153 meses. A duração média desses 57 inquéritos foi de 36 meses e se excluir processos de excecional complexidade ou com contornos mediáticos, a duração média foi de 29 meses.
Esta é a realidade. Em Mafra, na Guarda, em Oeiras, em Vila Franca de Xira, Cascais, Porto, Santa Comba Dão, Lisboa, Leiria, Loulé, Vila Real de Santo António, Amadora, Faro, Porto Santo, Praia da Vitória, Sintra, Coimbra e Matosinhos, etc.