A presença do primeiro-ministro num torneio de golfe, ao lado do dono do grupo Solverde, dois dias depois da primeira censura ao Governo, coincidiu com a ausência de Luís Montenegro em Kiev, nas cerimónias dos três anos de guerra, justificada com “questões de agenda”. O primeiro-ministro português foi dos líderes europeus que não estiveram presentes e um dos muito poucos a não participar na vídeo-chamada desse dia, por “problemas técnicos”. A oposição à esquerda diz que “é grave” e “indesculpável” e o Bloco de Esquerda vai fazer uma pergunta ao primeiro-ministro sobre o assunto. Fonte conhecedora do processo diz agora ao Observador que nunca esteve prevista a participação presencial de Portugal no encontro de Kiev.
Montenegro, ao que o Observador apurou junto de quem acompanhou as negociações diplomáticas, só terá sido convidado a participar de forma remota numa reunião em Kiev. A explicação nunca chegou a ser dada de forma oficial, pelo que a oposição — que a desconhece — insiste em que o primeiro-ministro esclareça porque não foi a Kiev, mas esteve em Espinho num torneio de golfe. A explicação oficial avançada foi falta de agenda, o que não se verificava na agenda disponível.
O torneio do dia 23 de fevereiro não constava na agenda pública do primeiro-ministro, mas é nessa qualidade que Luís Montenegro é referido pelo Clube de Golfe dos Economistas, que deu nota do evento onde também esteve Manuel Violas, dono da Solverde. No dia seguinte, segunda-feira, alguns líderes europeus deslocaram-se a Kiev, mais concretamente sete dos 27 Estados-membros: quatro primeiros-ministros e três chefes de Estado (além dos primeiros-ministros canadiano, norueguês e islandês e dos presidentes da Comissão e do Conselho europeus). Em Kiev estiveram apenas os presidentes da Letónia, da Lituânia e Finlândia e os primeiros-ministros de Espanha, Dinamarca, Estónia e Suécia. Os restantes participaram na cimeira de apoio à Ucrânia através de vídeo-chamadas, mas três não apareceram por motivos diferentes: a Hungria (de Viktor Órban), o Chipre e Portugal. No caso português, o gabinete do primeiro-ministro garantiu, na altura, que Montenegro esteve ligado, embora a imagem não tenha aparecido no videowall projetado na sala onde decorreu a reunião.
Luís Montenegro jogou no mesmo torneio que dono da Solverde dois dias após a moção de censura
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Confrontado pela Rádio Renascença com essa ausência, o gabinete do primeiro-ministro justificou-a, nesse momento, com “questões de agenda”. Questionado pelo Observador sobre a coincidência de datas, entre o torneio de golfe e Kiev, o gabinete do primeiro-ministro não quis fazer mais declarações sobre o assunto. O Observador apurou, no entanto, junto de fonte conhecedora do processo que o país não terá sido convidado a estar representado em Kiev, devido a limitações de segurança. Até porque foi mesmo um número limitado de primeiros-ministros dos 27 (apenas 4) que foram a Kiev. Mas essa explicação nunca foi avançada oficialmente. Já as “questões de agenda” que serviram de justificação, não se verificaram, pelo menos segundo o que constou nas agendas públicas do primeiro-ministro.
De acordo com as agendas nessas duas semanas, que foram consultadas pelo Observador, o primeiro-ministro esteve no Brasil de 18 a 20 de fevereiro, voltando direto para a Assembleia da República, a 21 de fevereiro, para participar na moção de censura. Depois disso, só voltou a ter agenda pública a 26, dia de reunião do Conselho de Ministros. As cerimónias em Kiev decorreram a 24 de fevereiro, o que implicava uma viagem que teria de iniciar-se, no máximo, a 23 de manhã. Nesse dia esteve no referido torneio de golfe — que não estava na agenda, tal como acontece com algumas reuniões e encontros que o primeiro-ministro entenda que devem ser mantidos privados.
Na semana anterior, entre terça e quinta-feira, Luís Montenegro tinha estado no Brasil, com o Presidente da República, para a Cimeira Brasil-Portugal e voltou já em cima do dia marcado para o debate da moção de censura apresentada pelo Chega, na Assembleia da República. Nesse debate, a 21 de fevereiro, o primeiro-ministro falou pela primeira vez do caso da consultora da sua família, a Spinumviva, e foi questionado pela oposição sobre a identidade dos clientes para os quais a empresa trabalhava. O líder do PS questionou-o até concretamente sobre a Solverde, com Montenegro a assumir ser “amigo pessoal dos acionistas dessa empresa”, impondo-se a si mesmo “inibição total de intervir em qualquer decisão que impacte diretamente com essa empresa em particular.”
No debate, o primeiro-ministro tinha sido vago nas descrições das empresas que eram clientes da Spinumviva, invocando sigilo profissional e passando para as próprias empresas a sua identificação, caso entendessem. A dada altura, referiu como cliente-âncora da consultora uma empresa que “gere unidades hoteleiras e um negócio, físico e online, com cerca de 500 mil clientes registados e 1.200 funcionários”. No dia seguinte, o Observador avançou que o grupo de hotelaria e casinos era mesmo cliente da Spinumviva. E dois dias depois do debate, no domingo dia 23, Luís Montenegro estava ao lado do dono do grupo, Manuel Violas, num torneio de golfe, entretanto noticiado pelo Polígrafo.
A conferência de apoio à Ucrânia estava prevista para o dia seguinte, em Kiev, para assinalar os três anos desde a invasão russa. Uma deslocação até à capital ucraniana é especialmente complexa desde que a guerra começou e, por razões de segurança, os líderes políticos que têm visitado o país deslocam-se de comboio a partir da fronteira da Polónia, onde apanham um comboio para chegar a Kiev. A deslocação, a partir de Portugal, tem de ser feita, no mínimo, com 24 horas de antecedência, já que tem de prever a viagem até à fronteira da Polónia com a Ucrânia e ainda o trajeto de comboio que demora mais de 12 horas.
À esquerda, o episódio do torneio de golfe ganha especial relevo quando coincide com a ausência do primeiro-ministro de uma cerimónia de apoio à Ucrânia, numa altura especialmente tensa no contexto internacional. Na rede social Bluesky, Ana Gomes, do PS, sublinhou a coincidência de datas, apontando que na data do torneio “o primeiro-ministro devia ter partido para Varsóvia, para dali tomar o comboio para estar em Kiev na manhã de 24 de fevereiro com Costa, Von der Leyen, Sanchez e outros, em solidariedade com a Ucrânia”. Pedro Nuno Santos chegou a ser questionado pelos jornalistas, nessa semana, sobre a ausência do primeiro-ministro de Kiev, tendo mesmo garantido o que teria feito no seu lugar: “Se fosse primeiro-ministro claro que estaria em Kiev, é um dos temas mais importantes que ocupa a União Europeia e Portugal não pode estar de fora, tem de ter o cuidado de garantir todas as condições informáticas para que as reuniões possam ter participação do primeiro-ministro português.”
O líder socialista aproveitou ainda esse momento, para dizer que o PS “não tem toda a informação sobre as discussões no plano europeu”, reconhecendo que não tem tido “contacto recente com o primeiro-ministro sobre política externa”. “Temos pouca informação para dizer de forma concreta qual deverá ser o nível de envolvimento em Portugal”, disse então, realçando que “o tema é muito importante” e que Portugal deve “dar o seu contributo”.
23 de Fevereiro. Dia em q PM deveria ter partido para Varsóvia, para dali tomar comboio para estar em Kyiv na manhã de 24/2 com Costa, VDL, Sanchez e outros, em solidariedade com Ucrânia… Mas ir dar umas tacadas de golf com o amigo patrão dos casinos urgia, claro… observador.pt/2025/03/04/l…
— Ana Gomes (@anagomes54.bsky.social) 2025-03-04T01:05:05.394Z
No Bloco de Esquerda, o líder parlamentar, Fabian Figueiredo, considera “importante que o primeiro-ministro esclareça se está a priorizar os momentos de lazer, nomeadamente jogos de golfe em que participa o dono da Solverde e cliente da sua empresa, em detrimento da respresentação de Estado que lhe cabe fazer”. O deputado do Bloco diz ainda ao Observador que o partido vai avançar, no Parlamento, com uma pergunta ao primeiro-ministro a pedir esclarecimentos.
Já no Livre, Rui Tavares diz que a situação “é grave” e “indesculpável”, garantindo que também vai pedir “esclarecimentos” ao primeiro-ministro. “Tem de esclarecer publicamente e se não o fizer, o Livre fará perguntas”, disse o porta-voz do partido ao Observador. “Seja porque estava a fazer gestão da crise política ou porque decidiu ir a um torneio de golfe com uma empresa cliente da consultora da sua família, isso é mais importante do que estar em trânsito para Kiev?”, questiona ao mesmo tempo que a ausência é “ofensiva para o bom nome de Portugal”.
Dois dias depois da cimeira em Kiev, Luís Montenegro fez questão de sublinhar na rede social X que tinha falado por telefone com o presidente ucraniano reiterando “o firme apoio” de Portugal “em todas as frentes”. E reafirmou a posição portuguesa em defesa de “uma paz justa e duradoura” que presuponha “garantias efetivas de segurança para a Ucrânia, o envolvimento da Europa e dos parceiros transatlânticos.” Também Volodymir Zelensky registou no X que tinha falado com Montenegro e “agradecido por toda a ajuda militar” e pela disponibilidade portuguesa em continuar a apoiar a Ucrânia este ano.
I spoke with Portugal’s Prime Minister @LMontenegropm and thanked him for all the military assistance provided and for readiness to continue support this year. We deeply appreciate that, in such challenging times, Portugal stands with Ukraine.
A just peace with reliable security… pic.twitter.com/hP10UWKzLJ
— Volodymyr Zelenskyy / Володимир Зеленський (@ZelenskyyUa) February 26, 2025