A conversa ainda mal começou e Noah Lennox (Panda Bear) já se desdobra em confissões, dizendo não está bem entre digressões, que a primeira leva de concertos com Sinister Grift como motor foram uma espécie de teste para perceber como seriam tais dias enquanto banda, o que ainda era preciso alinhar ou o que estaria a faltar. Isto importa mais doq que seria provável porque Sinister Grift é o primeiro álbum de Panda Bear com uma grupo, aquele em que o músico foge à estrutura de trabalho entre samples e o one man show. E entre estas ideias, sobre como funciona este processo coletivo, o homem solta-se e fala da vida em digressão: “Aprendi que não precisava de uma carrinha tão grande, porque era muito difícil de conduzir. É um pesadelo fazer isso nas ruas europeias”. Ou de como o glamour da vida na estrada é tão relativo.
Noah Lennox conhece bem as ditas ruas europeias. Há mais de vinte anos que faz digressões pelos países velhos, muitas delas em carrinhas. Vive em Lisboa há duas décadas. Mudou-se depois de se apaixonar, pela cidade e não só, em finais de 2004, quando veio tocar pela primeira vez no Festival Número, meses antes do brilhante Sung Tongs dos Animal Collective ser editado. Tanto nessa altura como em épocas de maior sucesso — por alturas de Merriweather Post Pavillion e Centipede Hz, provavelmente o período mais alto na relação arte/sucesso comercial — a condução era sobretudo assegurada por Noah. Não é presunção, é uma questão de atitude, ética e liberdade. A lógica agora mantém-se: “Faço a maior parte da condução. Nesta digressão, estamos a fazer pequenas salas e, agora com uma banda, quero ter a certeza de que toda a gente é paga decentemente. Por isso, assumi o papel de condutor”.
[“Sinister Grift”, na íntegra no Spotify:]
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Passaram-se seis anos entre Buoys e Sinister Grift (pelo meio houve Reset, com Sonic Boom, outro residente em Portugal). Seis anos que permitiram a Noah concretizar um sonho antigo, ter um estúdio próprio em Lisboa e experimentar mais. Percebe português, mas prefere não falar. Diz que ainda tem o português ao nível do pedido num restaurante. “Cresci tímido, quando vivia em Nova Iorque e, depois, quando comecei a fazer digressões, tinha de conhecer pessoas todos os dias. Então, desenvolvi um sistema de contar uma pequena piada, para desarmar situações e colocar as coisas entre mim e as outras pessoas num nível de perceção semelhante. Esse é o tipo de coisa que não consigo fazer em português, é uma espécie de último nível. Ser capaz de perceber alguém através da linguagem e responder de uma forma que quebre o gelo e me deixe confortável. Por isso, acho que aqui voltei a tornar-me numa pessoa tímida, reservada. Não falo com muita gente.”
Para estrear o estúdio, resolveu tentar algo novo: gravar um álbum de Panda Bear com uma banda. Convidou um amigo de sempre, Josh Dibb (conhecem-se desde os oito anos, é também um membro dos Animal Collective) para o ajudar, “porque ele foi a pessoa com quem comecei isto tudo e seria uma espécie de fechar um ciclo”. “Adoro o que ele anda a fazer em termos de mistura e engenharia de som. Queria que o meu próximo álbum tivesse precisamente esse som.”
[o vídeo de “Praise”:]
A presença de Josh serviu também para gerar uma perspetiva musical diferente. A ideia foi sendo gerada enquanto gravava os dois últimos álbuns de Animal Collective, em que os músicos também voltaram a tocar mais instrumentos e a ter um contacto com tempos iniciais. “Queria que isto fosse um novo passado na minha carreira, queria voltar a tocar os instrumentos.” Os álbuns de Panda Bear têm, por hábito, um tom onírico-festivo — “sonhar acordado, levar-me para outro lado”, como Noah diz a dado momento ao descrever o tipo de música que quer fazer. “É quase como se fosse meditação, quero que a minha música te leve para outro lado, sem qualquer tipo de moralismos.”
Sinister Grift contém esses elementos festivos. Mas tem mais qualquer coisa, o som é menos contido do que o habitual em Panda Bear. A guitarra é solta, leve, mas acutilante, como se ditasse riffs de gospel. Uma espécie de expansão introspetiva. Esse elemento e o ritmo da bateria mostram este Panda Bear menos conformado – não é que alguma vez o tenha sido – do que o esperado. É o álbum que nunca pedimos. Ainda bem.
[o vídeo de “Ferry Lady”:]
Porque pela primeira vez em anos, sentimos que não é um músico a envelhecer. Desde Person Pitch, ou seja, há quase duas décadas, que não havia uma transição tão óbvia no som de Lennox, uma que revela uma certa descoberta pela juventude, uma vontade de fazer hinos rock’n’roll clássico, como se Panda Bear estivesse nos anos 1950 e 1960. Uma que se ouve logo no tema de abertura, Praise. Mas Praise tem muitos resquícios do passado. Já Defense é quando a coisa se fecha, quando se percebe que não há aqui só um rejuvenescimento, há um novo Panda Bear.
Talvez nos tenhamos esquecido que este música existia, assim, desta forma. Um que deixou de ser uma memória de outros tempos, que está de novo à procura de outro caminho. Maria Reis — “sempre senti que ela está na mesma onda que eu, entendemo-nos muito bem”, diz Panda Bear sobre a portuguesa — colabora em dois temas, a já referida Praise e Ends Meet. Noah tem sido um dos grandes promotores da carreira internacional de Maria Reis (e, antes, das Pega Monstro), convidando-a para abrir concertos seus ou até a ser uma das artistas convidadas quando os Animal Collective foram responsáveis por uma parte da programação do festival Le Guess Who. Foi ele, aliás, produtor do álbum Flor da Urtiga, que Maria Reis editou em 2021.
[o vídeo de “Defense”:]
Outra colaboração que não passa despercebida em Sinister Grift é a da voz que aparece no segundo tema, Anywhere But Here. É a de Nadja Lennox, filha de Noah, que recita em português um poema escrito pela própria. Noah procurava algo assim há algum tempo, pensou em várias pessoas — entre as quais Dean Blunt — mas nunca tinha conseguido o resultado que procurava. A dada altura, lembrou-se da filha: “Disse que lhe pagava. Pedi-lhe para escrever uns poemas, mostrei-lhe o instrumental e pedi-lhe para escrever coisas que fossem importantes para ela”. Noah procurava algo que ouviu num tema dos The Louvin Brothers, Satan is Real, em que um dos momentos da canção é recitado por um dos músicos. Queria repetir a ideia, mas sem que soasse a alguém a pregar, só a falar.
O resultado é um tema de uma inocência encantadora que encaixa nesta ideia de um músico que enfrenta o próximo estágio da sua carreira sem medos. Por vezes, faz sentido voltar atrás. Panda Bear não precisava, mas ao fazê-lo, encanta-nos com a ideia de que a festa ainda só agora está a começar. Nos últimos álbuns, por melhor que fosse, sentíamos que estava a terminar, porque as boas ideias, mesmo quando são excelentes, chegam a um ponto de exaustão. O estúdio e a banda deram a Noah Lennox a energia para voltar a essa festa. Não para nos sentirmos como se tivéssemos vinte anos, mas para lembrar que a ilusão da juventude pode e deve ser para sempre. Sinister Grift é a frescura de um primeiro banho no mar.