Familiares e amigos do ex-Presidente Armando Guebuza e do actual chefe de Estado moçambicano (todos da Frelimo) usaram fundos públicos para financiar a compra de propriedades de luxo na África do Sul, indica-se numa investigação da Organização Não-Governamental (ONG) sul-africana Open Secrets. No caso de Angola, poderá o MPLA (igualmente no poder há 49 anos) pôr as mãos no fogo?
Na publicação intitulada “Para venda – Lavandaria imobiliária da África do Sul”, da autoria da Organização Não-Governamental (ONG) sul-africana Open Secrets, identifica-se cerca de 162 milhões de rands (8,4 milhões de euros) em casas compradas por indivíduos politicamente ligados, principalmente de Moçambique, República Democrática do Congo (RDC) e Guiné Equatorial, numa investigação baseada em documentos judiciais, registos de escrituras e fontes confidenciais.
No caso da elite governante moçambicana da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo, partido no poder desde 1975), os investimentos imobiliários na África do Sul ocorreram no âmbito das “dívidas ocultas”, o maior escândalo de corrupção pública da história pós-independência de Moçambique, segundo a investigação agora divulgada.
“A investigação da Open Secrets revelou que o filho do ex-presidente Filipe Nyusi, Jacinto Ferrão Filipe Nyusi, comprou uma casa de luxo no valor de 17,5 milhões de rands (912,772.00 euros) em Sandhurst, um subúrbio (…) de Joanesburgo”, lê-se no relatório a que a Lusa teve acesso.
A ONG sul-africana, que tem investigado a corrupção pública na África do Sul desde o anterior regime de ‘apartheid’, salientou que “Jacinto comprou a propriedade em Julho de 2015, dois anos após a campanha política do seu pai ter aceitado subornos da Privinvest”, uma das empresas indiciadas no caso das dívidas ocultas de mais de 2 mil milhões de euros.
“A nossa investigação revelou também os nomes dos advogados que trabalharam no negócio que garantiu a primeira casa de Jacinto Nyusi num luxuoso subúrbio da Cidade do Cabo em 2014, e como esse mesmo escritório de advogados estaria envolvido na venda da casa de Jacinto quando um relatório independente revelou a auditoria dos ilícitos por detrás do escândalo das dívidas ocultas”, acrescentando que o imóvel custou 3,9 milhões de rands [203.405 euros] no subúrbio rico de Constantia, na Cidade do Cabo.
“A propriedade de Constantia foi posteriormente vendida, em Março de 2018, por 4,5 milhões de rands [234.697 euros]”, frisou a Open Secrets, salientando que Jacinto Nyusi vendeu a propriedade “oito meses depois de a consultora financeira e de risco Kroll ter divulgado um relatório sobre o escândalo das dívidas ocultas” em Moçambique.
Todavia, na investigação refere-se que um ano após a compra da propriedade em Constantia, “Jacinto fez uma compra ainda mais avultada em Sandhurst, um dos subúrbios mais luxuosos e opulentos de Joanesburgo”.
“Situado em Sandton, o bairro está repleto de mansões escondidas atrás de imponentes muros e postos de segurança 24 horas por dia. Em Julho de 2015, Jacinto comprou uma impressionante casa por 17,5 milhões de rands”, adiantou, acrescentando que o imóvel foi vendido em Março de 2022, por apenas oito milhões de rands (417.249,3 euros).
Na altura, o antigo ministro das Finanças de Moçambique, Manuel Chang — considerado peça-chave do escândalo das dívidas ocultas -, enfrentava numa prisão de Joanesburgo a sua extradição para os Estados Unidos.
Segundo a organização sul-africana, a família Guebuza também investiu “fundos potencialmente ilícitos” em propriedades na África do Sul.
“Quando o Governo de Moçambique garantiu o empréstimo secreto em 2013, o Presidente Armando Guebuza era o homem responsável pelo Estado. O seu filho mais velho, Ndambi, foi condenado, em 2022, em Maputo, por aceitar 33 milhões de dólares em subornos relacionados com o escândalo. Ndambi comprou duas propriedades em Gauteng, na África do Sul, no total superior a 20 milhões de rands em 2013 — o mesmo ano em que a Privinvest começou a pagar subornos”, acrescenta-se.
As propriedades estão localizadas em Dainfern (9,3 milhões rands (485.023 euros) e Kyalami Estate (10,8 milhões de rands (563.206,11 euros), segundo a investigação sul-africana.
“Todavia, Ndambi não foi o único membro da família Guebuza a beneficiar do negócio. Os registos de propriedades mostram também que a filha do antigo Presidente, Valentina De Luz Guebuza, possuía duas propriedades em Dainfern, Gauteng, no valor de 15 milhões de rands cada (30 milhões de rands no total (1,6 milhões de euros).
“Ambas as propriedades foram compradas em 29 de maio de 2014 e parecem ser vizinhas uma da outra no condomínio de luxo. Valentina de Luz Guebuza morreu em 2016, alegadamente morta a tiro pelo marido”, referiu.
A investigação sul-africana, citando procuradores moçambicanos, indica também que o intermediário moçambicano Bruno Langa, que apresentou Armando Guebuza aos empresários envolvidos no escândalo das dívidas ocultas, investiu mais de 13 milhões de rands (677.887,95 euros) em imóveis nas províncias sul-africanas de Gauteng e Mpumalanga.
Na óptica da Open Secrets, na sequência das eleições gerais em 9 de Outubro de 2024, que marcaram o fim da presidência de Nyusi, o chefe de Estado moçambicano “poderá ainda enfrentar pedidos de indemnização pelos ‘donativos’ que aceitou”.
Angola é o MPLA, Moçambique é a Frelimo
Em Fevereiro de 2019, a consultora Eurasia considerou que a divulgação da existência de contratos entre Angola e as empresas envolvidas no escândalo da dívida oculta de Moçambique “podia beliscar ligeiramente” a imagem de João Lourenço.
“A agenda reformista de João Lourenço não vai, provavelmente, perder fôlego por causa deste desenvolvimento e apesar de a sua imagem de combate à corrupção possa ser ligeiramente beliscada, a campanha anti-corrupção focada na família de José Eduardo dos Santos e seus aliados vai provavelmente continuar”, escreveu o director para a África subsaariana desta consultora, Darias Jonker.
Num comentário à divulgação de contratos no valor de mais de 500 milhões de dólares entre o Ministério da Defesa de Angola e a Privinvest, a Eurasia disse que “o projecto da Privinvest em Angola é «notícias velhas», foi amplamente divulgado em 2016 e faz parte do projecto Pro-Naval decretado pelo antigo Presidente José Eduardo dos Santos para garantir um sistema de segurança marítimo para o país”.
Sobre o actual chefe de Estado angolano, que na altura era ministro da Defesa, Darias Jonker disse que “apesar de se ter distanciado da corrupção descarada da era de Eduardo dos Santos, era inevitável que os três anos passados no Governo do ex-Presidente da República como ministro da Defesa o ligassem a contratos militares questionáveis”.
A UNITA defendeu, na mesma altura, uma averiguação à denúncia sobre o alegado envolvimento do Ministério da Defesa, na tutela de João Lourenço, actual Presidente da República, Presidente do MPLA e Titular do Poder Executivo, num negócio com empresas envolvidas nas “dívidas ocultas” moçambicanas.
A posição foi então manifestada pelo líder do grupo parlamentar da UNITA (hoje Presidente do partido), Adalberto da Costa Júnior, numa conferência que abordou questões ligadas à limitação (inexistência) da fiscalização dos deputados aos actos de governação.
Em causa estava, como o Folha 8 revelou, um relatório da consultora EXX Africa que alertou que Angola poderia enfrentar riscos reputacionais por o Ministério da Defesa angolano, na altura dirigido pelo actual chefe de Estado, João Lourenço, ter feito um negócio de 495 milhões de euros com as empresas envolvidas no caso das “dívidas ocultas” de Moçambique.
O “Relatório Especial” da EXX Africa sobre a ligação entre a empresa Privinvest e o Governo do MPLA (no Poder desde 1975), quando João Lourenço era ministro da Defesa, adiantava que “há indicações cada vez maiores de envolvimento de líderes políticos angolanos no escândalo moçambicano que ainda não foram totalmente divulgadas”.
O Ministério da Defesa de Angola, dizia esta consultora, “chegou a fazer um contrato de 495 milhões de euros para comprar barcos e capacidade de construção marítima à Privinvest, num contrato com aparentemente notáveis semelhanças com a Prolndicus e MAM (em termos de palavreado e conteúdo), as empresas que estão no centro do escândalo da “dívida oculta” de Moçambique.
“Estas ligações e os negócios feitos arriscam-se a minar o ímpeto muito popular e mediático contra a corrupção, e podem também embaraçar os principais líderes políticos angolanos, e colocam riscos reputacionais para os investidores em Angola”, acrescentava o relatório.
Em causa estavam dois contratos que a EXX Africa diz terem sido assinados pelo Ministério da Defesa de Angola com as empresas Privinvest e Prolndicus, as duas empresas que negociaram empréstimos de mais de mil milhões de dólares à margem das contas públicas, em Moçambique.
“A conclusão mais significativa [da investigação levada a cabo pela consultora EXX Africa] é que a Simportex — uma empresa do Ministério da Defesa de Angola, e que entrou numa parceria com a Privinvest — assinou dois contratos significativos, no total de 122 milhões de euros, em 2015, com a Finmeccanica, depois chamada Leonardo S.p.A) para aquisições que a Privinvest poderia ter feito ela própria”, lê-se no documento.
Em Dezembro de 2015 a Simportex terá “assinado contratos para a compra e venda de equipamento, parte suplentes, e para dar instalação e treino para equipar um centro nacional e três centros de coordenação marítima regional, bem como para instalar várias estações de controlo, replicadores de sinal e meios de comunicação na costa angolana”.
O relatório explica que “o acordo foi feito entre o Ministério da Defesa e a Selex Company Ess num valor em kwanzas equivalente a 115 milhões de euros”, e incluía também “a compra e venda de dois veículos de patrulha ultra-rápidos, peças suplentes, ferramentas e serviços de treino, entre o Ministério da Defesa nacional e a companhia Whitehead Sistemi Subacquei SPA, num valor em kwanzas equivalente a 7,3 milhões de euros”.
Ainda em 2015, a consultora diz que Angola “entrou noutro acordo com a subsidiária francesa da Privinvest, a CMN (que construiu os barcos da EMATUM) para fornecer um projecto hidroeléctrico”, sobre o qual não são dados mais pormenores.
Citando uma fonte “próxima da ProIndicus”, a EXX Africa diz que João Lourenço, enquanto ministro da Defesa, visitou o projecto de Moçambique “enquanto parte de um esforço da Privinvest, liderada por Boustani, para lhe vender um pacote similar” ao que tinha apresentado a Moçambique.
O antigo vice-presidente Manuel Vicente, apresentado como alguém “que agora age como consultor financeiro e económico com extraordinários poderes e influência sobre as políticas públicas”, terá tido um “papel proeminente” nos acordos entre Angola e a Privinvest, já que terá apresentado o empresário Gabriele Volpi às autoridades moçambicanas, primeiro, e depois entre Jean Boustani e João Lourenço e a Privinvest.
O director da EXX Africa e autor do relatório diz que o mesmo “não acusa ninguém de qualquer acto ilícito nos negócios entre a Simportex e a Privinvest” e enfatiza que o objectivo é “alertar para o facto de que a Privinvest tem uma reputação controversa e que os negócios com esta firma devem ser sujeitos a um escrutínio mais próximo, preferencialmente pelo próprio Governo angolano”.
Questionado sobre os pormenores da investigação levada a cabo, Robert Besseling disse que “o objectivo era alertar os nossos clientes sobre a possibilidade de haver um risco reputacional que precisa de ser investigado mais em detalhe para eles limitarem a sua exposição” e conclui que “o precedente sobre o que aconteceu em Moçambique deve servir como um aviso para todas as partes envolvidas em grandes negócios de procuração em Angola”.
Entre os documentos apresentados pela Justiça norte-americana contra Jean Boustani e Manuel Chang, há uma apresentação de 27 páginas sobre o que é a Privinvest, na qual são apresentados exemplos de projectos em países como Alemanha, França e Angola, sendo que neste último mostra-se um desenho computorizado de uma fragata ligeira, de 90 metros, com o título Project Angolan Navy, mas sem mais pormenores além das especificações técnicas da fragata.
O jornal The New York Times, na sua edição de 25 de Março de 2018, relatou como Elliot Broidy (um empresário norte-americano que financiou e apostou fortemente em Donald Trump) tentou “caçar” negócios usando a sua aproximação a Trump.
Além de outros casos citados, o jornal escreveu que, “numa carta datada de 3 de Janeiro de 2017 e enviada por email a dirigentes de topo do Governo angolano, Elliot Broidy indicava que procedia ao envio de um convite para as celebrações da posse do Presidente Trump, bem como uma proposta para a Circinus (empresa de que era dono) prestar serviços de segurança em Angola”.
João Lourenço, na altura ministro da Defesa mas já candidato presidencial do MPLA, terá recebido uma carta mais tarde de Elliot Broidy a pedir uma resposta até 9 de Janeiro daquele ano, já com o documento assinado de um acordo de 64 milhões de dólares e válido por cinco anos.
O jornal acrescentava que três dias antes da posse de Donald Trump, a 17 de Janeiro, “os angolanos efectuaram um pagamento de seis milhões de dólares à Circinus”, mas, ainda segundo o The New York Times, citando fontes próximas de Elliot Broidy, o pagamento terá ficado aquém do combinado.
Ainda de acordo com o jornal norte-americano, João Lourenço terá sido inclusivamente convidado para o resort de Donald Trump em Mar-a-Lago (ou Casa Branca de Inverno, um dos locais de eleição de Trump desde que tomou posse), na Flórida, mas o agora Presidente angolano nunca respondeu.
Depois da posse de Donald Trump, o empresário de Los Angeles, que apoiou o pré-candidato republicano Ted Cruz até que este desistiu da corrida à Casa Branca, ofereceu-se na altura para conseguir encontros entre João Lourenço, ainda ministro da Defesa, com autoridades americanas.
“Vários preparativos foram feitos para receber a sua visita, incluindo reuniões adicionais no Capitólio (Congresso) e no Departamento de Tesouro”, escreveu Elliot Broidy num dos emails, enquanto noutro pedia “por favor, processem o pagamento imediatamente”.
Mais tarde, depois da posse de João Lourenço como Presidente de Angola, o apoiante de Donald Trump voltou a disponibilizar-se para promover uma maior aproximação entre os dois países, prometendo, inclusive, encontros com o Presidente e o vice-presidentes americanos.
João Lourenço, ainda de acordo com o jornal, não respondeu às propostas nem o Governo de Angola fez qualquer pagamento adicional.
O The New York Times descreveu Elliot Broidy como um empresário que tem usado a sua aproximação ao Presidente americano para atrair políticos, na sua maioria de países com um elevado nível de corrupção e de falta de transparência, que depois usam fotos e pequenos apertos de mãos com Donald Trump para ganhos políticos nos seus países.
Os jornais norte-americanos The New York Times e The Wall Street Journal publicaram no dia 22 de Agosto de 2017, véspera das eleições angolanas, reportagens que abordam a corrupção em Angola, que “coloniza” Portugal para lavar dinheiro.
“O colonizador passou a colonizado”, lê-se na reportagem do The New York Times, intitulada “Portugal dominou Angola durante anos. Agora os papéis inverteram-se”. A extensa peça começa em Cascais, no Estoril Sol Residence, luxuoso bloco de apartamentos na marginal que atraiu a elite angolana – segundo o jornal, o prédio já é conhecido como “o prédio dos angolanos”.
Um dos proprietários da luxuosa Estoril Sol Residence mencionados pelo The New York Times era (é) o ex-vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, que terá pago cerca de 2,8 milhões de dólares pelo 9º andar com vista para o mar. Lembre-se que Manuel Vicente é suspeito de ter corrompido o procurador Orlando Figueira para que arquivasse dois inquéritos, um deles o caso Portmill, relacionado com a alegada aquisição deste imóvel de luxo no Estoril.
De caso em caso, o jornal norte-americano vai sustentando a existência de uma elite angolana, que acumulou fortunas e que está a lavar dinheiro em Portugal. Entre os exemplos dados pelo The New York Times, também constava o de Isabel dos Santos, filha do ex-presidente de Angola que foca a sua actividade num escritório discreto de localizado ao lado da Louis Vuitton da Avenida da Liberdade, em Portugal.
“Isabel dos Santos tornou-se uma das figuras mais poderosas de Portugal, ao comprar posições importantes na banca, nos media e no sector da energia”, escreveu o diário.
Já o The Wall Street Journal, que focou o seu artigo na Operação Fizz, considerava que se criaram condições perfeitas em Portugal para a lavagem de dinheiro angolano. Ao ficar rica em petróleo, Angola beneficiou do boom do ouro negro, enriquecendo a liderança de José Eduardo dos Santos. Os angolanos passaram a poder comprar o que os portugueses, que sofriam de uma crise financeira, não eram capazes de adquirir.
O “poderio” da elite angolana e a “permissividade” portuguesa foram a tempestade perfeita para a corrupção em Angola: “Os portugueses sabem como os angolanos são proeminentes a alegadamente afunilarem milhões de dólares em imóveis de luxo, apesar dos cidadãos angolanos serem dos mais pobres do mundo”.
“Angola está frequentemente no topo dos países mais corruptos do mundo e Portugal destacado pela sua permissividade no combate ao branqueamento de capitais e à corrupção, particularmente em relação aos angolanos, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico”, escreveu o diário norte-americano.