Donald Trump vai ser o próximo presidente dos EUA e não há nada mais a fazer que aceitar o facto. E viver com ele. Com uma certeza e com uma expectativa. A certeza é que dificilmente a América volta a ser o que era. Mesmo sem Trump, os eleitores que votaram nele existem e votariam noutro candidato que lhes dissesse algo semelhante. A verdade é que não foi Trump quem mudou os EUA; foi a globalização. A expectativa é que Trump tenha mais cuidado desta vez. Dir-me-ão que agora vai ser pior, pois não há quem o trave. O GOP detém a maioria no Senado e na Câmara dos Representantes e os conservadores tradicionais que ainda tentaram acomodar Trump no primeiro mandato foram definitivamente afastados.
Sucede que não é só uma equipa sensata que pode aplacar alguém complicado; as circunstâncias também dão uma ajuda. E estas são de meter respeito até para quem se sinta o dono do mundo.
Uma das razões para a vitória de Trump foi a inflação. Esta está praticamente dominada, mas foram três anos difíceis para os norte-americanos. Na verdade, ainda estão a sê-lo, pois os efeitos das descidas nas taxas de juros não são imediatos. Tanto as prestações da compra de casa como dos demais créditos levam tempo a actualizarem-se às novas taxas.
Uma das promessas de Trump é aumentar as tarifas aos produtos vindos da China e do resto do mundo, Europa incluída. A ideia é ingenuamente bonita, visa proteger a indústria nacional, mas também é antiga e corre sempre mal. O preteccionismo faz a indústria parar no tempo, tornar-se ineficiente e ainda menos preparada para enfrentar a concorrência externa. Mas essas consequências na indústria norte-americana serão a médio e longo prazo. Algo com que Trump não se preocupa. Só o risco do imediato o pode fazer pensar melhor. E esse é a inflação, a tal que o fez ganhar a Casa Branca.
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O aumento das tarifas sobre produtos estrangeiros terá como consequência o aumento dos seus preços e, consequentemente, a redução da sua quantidade. Com menos oferta é natural que os produtos norte-americanos fiquem mais caros, além da ineficiência crescente da indústria norte-americana também contribuir para o aumento dos preços.
Donald Trump prometeu pôr o mundo na ordem. Os EUA sentem-se ameaçados na Europa, no Médio Oriente, no Pacífico e na Ásia Oriental. Apesar da admiração que possa sentir por ditadores como Putin ou Kim Jong-un, Trump e a equipa que vai trabalhar com ele sabem que a Rússia, a Coreia do Norte, o Irão e a China são aliados casuais contra os interesses norte-americanos. O seu objectivo é reduzir a esfera de influência da América e isso implica empobrecê-la. Uns EUA mais pobres terão menos recursos e menor capacidade para investir em defesa. É precisamente o contrário do que Trump prometeu. Make America Great Again até pode passar por uma América menos intervencionista, mas também só pode significar uma América mais rica e mais poderosa.
É provável que um dos objectivos estratégicos de Trump em reduzir a ajuda à Ucrânia seja libertar a Rússia para a Ásia Central e, assim, provocar atritos com a China. Mas a aposta seria arriscada, pois Putin está mais focado em recuperar o que entende ser a esfera de influência russa na Europa (que vai até à Hungria) e Xi Jinping em fazer o mesmo na Ásia Oriental. Apenas quando o conseguirem, ou se forem devidamente travados, é que China e Rússia darão prioridade à resolução dos seus interesses conflituantes na Ásia Central.
A China apoia a Rússia porque não quer que o regime de Putin caia. O que Pequim menos quer é que a Rússia se torne instável ou, pior ainda, passe a ser governada por uma elite próxima do Ocidente. Além desse interesse imediato e da necessidade em confrontar inimigo comum norte-americano, pouco mais os une.
Tão assim é que o objectivo a longo prazo dos EUA reside em separar a China da Rússia à semelhança do que fez no início dos anos 70. É nesse ponto que a Europa pode ter um papel importante. O apoio da China à Rússia perante a invasão da Ucrânia colocou os europeus de sobreaviso relativamente a Pequim, o que não agrada os dirigentes chineses. Realçar este desentendimento e apreensão europeia pode acabar por ser um bom instrumento para os norte-americanos usarem nas conversações com a China.
A verdade é que, seja interna ou externamente, qualquer peça que Trump mexa vai ter implicações em todo o tabuleiro. Não é que seja isso que o vai travar, claro que não. As escolhas já conhecidas para a nova administração perspectivam uma mistura de diferentes formas de fazer política e de entender o estado. A boa e velha táctica do narcisista que divide para reinar. Mas, e independentemente de tudo isso, pode ser as circunstâncias façam com que Trump tenha algum cuidado antes de agir.