O inventor Clive Sinclair costumava dizer que não adiantava muito perguntar às pessoas qual o gadget que queriam ter, porque possivelmente não o conseguiriam imaginar, mas essa máxima não explica o sucesso em torno de The Spectrum. Se os primeiros ZX Spectrum, lançados há mais de 40 anos por Clive Sinclair, eram mensageiros do futuro, The Spectrum (sem ZX, e sem Clive Sinclair, que morreu em 2021) é claramente uma aposta na nostalgia. E também um grande sentido de oportunidade comercial, pois não falta quem consiga reconhecer o pequeno computador em causa.
“É a primeira vez que se faz um computador que tem a aparência de um ZX Spectrum original e que está à venda em todas as lojas convencionais”, informa João Diogo Ramos, mentor e líder do museu Load ZX, que tem dado a conhecer, a partir de Cantanhede, o furor dos anos 80 em torno dos computadores ZX Spectrum. “O produto está bem feito e possivelmente a maioria das pessoas não quer saber se diz Sinclair ou Retro Games”, acrescenta.
Se o ZX Spectrum foi lançado pela Sinclair, e mais tarde viria a ser comercializado pela Amstrad e pela Timex, “The Spectrum”, que surge agora com o mesmo apelido que estreou nos anos 80 em alusão à palete de cores dos videojogos, já é uma iniciativa da Plaion e, mais importante, da Retro Games, que tem no currículo a revisitação de diferentes computadores e consolas do passado – e acaba de acertar na lotaria da nostalgia em plena época natalícia.
“No Reino Unido, houve lojas que esgotaram logo no primeiro dia os estoques de The Spectrum. Em Portugal isso não aconteceu, mas as vendas estão a correr muitíssimo bem. Em cinco semanas, foram já vendidos uns quantos milhares em Portugal”, refere Nuno Coelho, responsável pela categoria de videojogos da Ecoplay, que garante a representação comercial do The Spectrum para o mercado português. Questionado pelo Expresso, o responsável da Ecoplay escudou-se a dar uma previsão precisa sobre as vendas do The Spectrum.
À primeira vista, só mesmos os mais puristas – e existem uns quantos – haverão de distinguir um ZX Spectrum e um The Spectrum se não olharem para as marcas que surgem no topo. Há quem refira que as míticas teclas são ligeiramente diferentes, mas valha a verdade mantêm a mítica borracha que distinguia o pequeno computador que tanto permitia programar como passar tardes inteiras em torno dos videojogos – desde que houvesse um gravador disponível e um televisor pronto a ser usado. “Sou parte interessada, mas tenho a dizer que é um produto fenomenal. Não é só um computador. É uma homenagem ao produto original”, sublinha Nuno Coelho.
Ser “fenomenal” nos dias que correm pode não ser propriamente o mesmo que ser “fenomenal” nos anos 80. E para isso bastará fazer o teste com um adolescente da atualidade frente aos toscos gráficos produzidos com uma memória RAM de 48 KiloBytes (KB), depois de se ter habituado a usar telemóveis com 8, 12 ou 16 GigaBytes (GB) de RAM, para descobrir se a palavra mudou ou não de significado.
Para o efeito, dará quase no mesmo: a menos que algo de surpreendente ou inesperado surja a meio da experiência lúdica, este é dos tais produtos que se compram “com uma lagriminha no olho” pela infância de há 40 anos – e que tem duas vantagens no entender dos especialistas: um preço acessível face a outros computadores e consolas; facilidade de uso; e dispensa de montagem de componentes e placas computacionais em chassis – porque já vem tudo devidamente montado e pronto a usar.
As duas últimas características são especialmente importantes, pois é possível que uma parte das crianças dos anos 80 ainda não tenha recuperado dos traumas gerados pelas vezes em que não conseguiam sintonizar o televisor ou que não conseguiam carregar jogos a partir de cassetes e gravadores externos, que davam muitas vezes erro e obrigavam a recomeçar tudo de novo – num cenário que, por vezes, se prestava mais a rituais supersticiosos, que ao entendimento da tecnologia.
“O sucesso deve-se ao mercado saudosista. A maioria das pessoas esteve mais de 20 anos sem poder acompanhar o que se fazia neste segmento. Por outro lado, o The Spectrum é fácil de usar, tem menus simples, e permite carregar os jogos de forma instantânea”, comenta André Luna Leão, responsável pelo site Planeta Sinclair, que se dedica à análise e compilação de jogos do ZX Spectrum.
Em vez das velhinhas cassetes dos anos 80, The Spectrum carrega os jogos a partir do armazenamento interno, exigindo apenas que se escolha as opções disponíveis no menu indicado, como acontece com qualquer computador da atualidade. Só que os mais nostálgicos podem ainda recriar as antigas rotinas através da inserção do célebre comando Load “” (ou “load-aspas-aspas”) que põe o jogo a carregar com os mesmos ruídos e tempos de espera do passado – mas sem exigir um gravador, e os costumeiros erros que impediam o acesso ao jogo.
Apesar da aparência fiel ao original “ZX”, o The Spectrum não deixou de caprichar com a possibilidade de conexão ao televisor através de cabos HDMI e a possibilidade de reproduzir imagens de Alta Resolução (a 720p). Juntamente com a possibilidade de gravar os últimos 40 segundos de um jogo, a compatibilidade com títulos desenhados tanto para 48 KB como para 128 KB (o “ZX” teve mais que uma versão) também há de ser especialmente valorizada entre quem não está para se maçar ou puxar pela veia de engenhocas.
Estes mimos tanto podem ser encarados como uma adaptação necessária à evolução do “habitat” tecnológico de cada casa, que passou a usar televisores e interfaces diferentes das dos anos 80, como pode ser vista como uma eventual contingência, pois muitos dos componentes que permitiram criar a versão original poderão já não estar disponíveis nas fábricas da atualidade.
“Tivemos de gastar muito tempo e analisar vários detalhes para conseguir as teclas de borracha que permitem ter a mesma sensação de há 40 anos, sendo que os equipamentos que eram usados para produzir estes cabos (usados pelo “ZX” original) já não existem”, exemplificou Chris Smith, um dos líderes da Retro Games, ao site GameReactor pouco antes da estreia de The Spectrum.
Paul Andrews, outro dos líderes da Retro Games, aproveitou a mesma ocasião para fazer a ponte entre passado e futuro: “Além de realmente replicar as máquinas originais, (the Spectrum) tem todos os atrativos que se espera ver numa consola”.
Tanto Paul Andrews como Chris Smith já têm histórico no desenvolvimento de sucedâneos do ZX Spectrum. O primeiro projeto estreou em 2015 com a denominação de Vega pelas mãos da Retro Computers. Houve uma segunda versão, que surgiu em 2018 com o nome de Vega+, com o objetivo de funcionar como consola portátil com ecrã próprio, mas acabou por ter contratempos e polémica ao dar resposta às várias encomendas recebidas através de uma plataforma de financiamento coletivo.
Apesar da imagem negativa que deixaram no segmento, os fundadores da Retro Games conseguiram reabilitar o negócio – e agora alcançaram mesmo um furor inusitado com a passagem de Retro Computers para Retro Games, apesar de estarem longe de serem os primeiros a criarem réplicas do famoso computador “oitentista”.
No circuito, já eram sobejamente conhecidos projetos com as denominações de Harlequin, ZX Uno e ZX Omni, mas antes de The Spectrum, a principal réplica do famoso computador dava pelo nome de ZX Spectrum Next. Esta última versão começou a ser engendrada no Brasil, mas ainda teve o contributo de Rick Dickinson que trabalhou com Clive Sinclair no desenvolvimento do “ZX” original dos anos 80, e o visual renovado já contemplava possibilidade de expandir para uns “estrondosos” 2 MB de memória RAM e ainda acesso à Net por Wi-Fi.
A ficha técnica poderá não dizer muito face ao que são as referências da atualidade, mas há pelo menos um característica a ter em conta: o Next que começou a ser comercializado em 2020 em plataformas de financiamento coletivo, opera numa lógica de FPGA (sigla de Field-programmable gate array) que permitem que um conjunto de componentes se comportem de forma pré-definida – mesmo que tenham capacidade para executar tarefas mais complexas.
Este fator é especialmente importante para fazer a distinção entre o The Spectrum, que tem aparência similar ao “ZX”, e o Next, quye optou por reinventar a aparência do “ZX”. “Os puristas podem dizer que é apenas um emulador, mas se calhar essas pessoas não são mais que 1% da população, e possivelmente os criadores do The Spectrum preferem chegar ao resto da população”, responde João Diogo Ramos.
Os emuladores fazem algo similar ao que os computadores da atualidade fazem quando correm jogos do ZX Spectrum num dos vários repositórios que existem na Internet: processadores, memórias e placas gráficas são diferentes dos ZX Spectrum mas executam as mesmas funções através de adaptações por software, em vez de adaptações predefinidas no hardware como acontece com o Next e o FPGA.
Além de marcar presença nas grandes cadeias comerciais e não implicar qualquer tipo de montagem de componentes ou processo de instalação complexo, The Spectrum ainda consegue ter como trunfo pelos 99,99 euros do preço final. A partir deste ponto de partida, qualquer comparação arrisca cair em desfavor dos 400 euros que podiam custar um Next com os portes de envio.
Num segmento que é conhecido pela “carolice” e o espírito do bric-à-brac, já não ninguém estranha os cerca de 200 a 300 jogos que são lançados todos os anos para o ecossistema Spectrum. Além dos 48 jogos que vêm com a máquina (Saboteur”, “Skool Daze”, “Manic Miner”, entre outros), The Spectrum pode receber mais títulos a partir de dispositivos USB, mas André Luna Leão duvida que este furor natalício abra caminho a novos investimentos para os nostálgicos e limitados computadores. Até porque os jogos de ZX Spectrum são, na maioria, gratuitos e na mais onerosa das hipóteses não custam mais de 10 euros. Itch.io é possivelmente o principal ponto de distribuição deste tipo de jogos na Internet.
“Admito que até possam aumentar as vendas de jogos que custam 1 ou 2 euros, mas não acredito que este negócio seja tão rentável que acabe por criar uma nova fileira na indústria dos videojogos ou atraia as grande produtoras de videojogos”, prevê.
Decididamente, a memória não tem preço.